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Cidade do Rio de Janeiro, bairro da Lapa, carnaval do ano em que nosso terceiro milênio cristão alcança sua primeira década. De forma premeditada, insurjo-me à cidade de São Sebastião, tendo como marco proveniente a capital nacional do granito, centro do norte capixaba, que é a nossa bela terra natal designada por Nova Venécia, município bem situado no mapa estadual, berço de personalidades relevantes e obscuras, além de ser detentora de rica e vasta disseminação da colonização e cultura italiana, fato histórico de enorme orgulho para todos seus descendentes.
No penúltimo dia da semana que antecedeu o carnaval, de número correspondente a uma dúzia, conduzi meu singelo veículo escuro e popular, confeccionado por uma montadora da qual a sigla são duas letras que correspondem às mesmas utilizadas pelo Estado governado pelo neto de Tancredo, porém numa ordem inversa. Munido de um saboroso café amargo, uma boa água gasosa e um tubo de drops extra forte, daqueles que dizem que potencializa a degustação da sensível região que a todos oriundam, segui sensatamente ao palco das grandes celebrações humanas, a capital fluminense.
Com as cautelas de costume, percorri solitária e vagarosamente da minha origem ao meu destino em aproximadamente doze horas de locomoção, pela rodovia federal longitudinal que corta o Brasil de norte a sul, conhecida por BR-101 e oficialmente desconhecida por Rodovia Governador Mário Covas, de acordo com a lei nº 10.292/01. Samba na freqüência, cafeína se misturando a nicotina, atenção nas ultrapassagens, ainda mais atenção na desatenção alheia, prossegui meu trajeto cogitando a hipótese de conceder uma despretensiosa carona feminina que me renderia um maior entusiasmo na propositura da quinta marcha.
Detalhe relevante em minha caminhada automobilística foi a surpresa desagradável que constatei ao chegar ao Estado de Sérgio Cabral, qual seja, algo em torno de cinco pedágios da cidade de Campos dos Goytacazes até os arredores de Niterói. Que lástima! Uma concessionária de serviço público terrestre me confiscou o equivalente a um justo e honesto litro de conhaque para consumo próprio, mais precisamente aquele que desce macio e reanima. Ora, pergunto-lhes: depois de uma longa empreitada, para efeitos de relaxamento e pontapé inicial no festejado carnaval da Lapa, eu deveria ingerir um copo de refresco de tamarindo ou uma dose graúda do drinque acima mencionado? Enfim, paciência.
Tinha como meta inicial desembarcar meus apetrechos na residência dos meus irmãos em Copacabana, porém como pisei na ponte cartão-postal por volta das vinte e duas horas e trinta minutos do começo do feriado da mais relevante folia anual, fui acometido pela decisão lógica de prosseguir diretamente ao palco das vibrações boêmias, alcoólicas, subversivas, libidinosas e sambísticas. Sejam bem-vindos à Lapa e aos seus adjetivos preconizados.
Relógio apontou vinte e três horas, estacionamento privado da catedral do padroeiro da municipalidade, quitei outro litro de destilado. Pois bem, novamente ferido no bolso, porém dessa vez por um vigia informal se dizendo responsável pelo local ou pelo próprio vaticano, talvez. Mas não importa, o esperado, e concretizado, ferimento cardíaco ocasionado pelo samba no pé das apimentadas meninas cariocas a posteriori haveria de suprir qualquer dano de ordem pecuniária.
Viagem realizada com paciência e prudência. Recurso financeiro necessário para atingir a faixa preta na arte da embriaguez. Coração solitário, alma perdida, mente contaminada pelo anseio de seio, hormônios saltitavam em busca das mais pecaminosas curvas corporais de mulheres que conhecia de outros carnavais. Lapa querida, obrigado por existir. Suas características me completam, confesso.
Nessa perspectiva, logo me dirigi ao primeiro ambulante e arrematei num tapa só 355 ml de cevada de uma gelada divulgada por um obeso artilheiro que se encontra no momento no Parque São Jorge, capital paulista. Incrível, minha epiglote se abriu numa sutileza tão aprimorada, que denotava a mesma facilidade que temos em concretizar um beijo molhado após a presa nos flertar por três segundos ininterruptos depois da meia-noite.
Conforme combinado previamente, embaixo dos Arcos da Lapa me ajustei no sentido de encontrar um bom e velho amigo de infância. Colega de ensino fundamental, parceiro de longas caminhadas lírico-empíricas, economista de primeira, gentileza em forma de pessoa e educação em extinção, etimologicamente possui nome de anjo. Amigo, registro minha leal amizade a sua pessoa e comungo dos seus exemplares parâmetros de vivência com harmonia. Conte comigo. E por falar em contar, vamos beber e sambar o carnaval? Afinal, nas delimitações territoriais do Circo Voador somos palhaços que flutuam!
Após ótimo desempenho da banda de carnaval Simpatia é Quase Amor, do bairro de Ipanema, zona sul da capital, eis que me surge a única surdo um do samba qualitativo: bateria da Estação Primeira de Mangueira! Percussão e cordas correm de mãos dadas. E conosco o chopp gelado sobe e desce numa sintonia similar ao ritmo do nosso chefe do poder executivo federal. Nessa altura, sustento com propriedade que não era efeito do drinque fermentado, entretanto inexplicável era a cadência do samba e a qualidade estética das meninas sapateando. Agoniante, como diria o pai do nosso amigo reverenciado. Olvidei meu juízo, observei atentamente, sambei – ainda que com minhas limitações – maliciosamente ao lado da perdição vestida de saia. Encarei o pecado, sim!
Sábado de manhã, Rua da Passagem, bairro de Botafogo, apartamento do amigo doutrinado por ministros e presidentes do Banco Central do Brasil, uma boehmia trincando inaugura o café da manhã. Que qualidade líquida, que frescor. Melhor do que um trago dessa natureza, somente um firme beijo ardido nas pequenas cariocas marcadas dermatologicamente pelo astro-rei, acrescido de suas carícias íntimas que esta breve narrativa há de censurar.
E nesse diapasão, surge a nossa querida amiga e namorada do anfitrião. Diretamente de São Gabriel da Palha, terra do café conilon, norte do Espírito Santo, vizinha de fronteira geográfica com a nossa Nova “Veneza”, trazendo consigo toda sua presteza, simpatia, formosura, sapiência e educação, além de ótimo senso de humor e companheirismo. Realmente, ambos se merecem. Faço votos pela constituição do matrimônio, acreditem! Só espero que a minha companheira no dia da celebração não pegue o buquê de flores.
Samba na rua, samba ao vivo. De dia e de noite a trilha sonora ecoava. Vejam, não há carnaval igual no planeta para os adeptos de tal gênero musical. Que delícia ver o povo por todos os cantos da cidade atrás de um bloco rememorando os grandes e imortais clássicos do passado. Contagiante, saudosista, enobrecido, vasto, democrático, heterogêneo, popular, perigoso, calmo, promíscuo, inesquecível. Assim se perfaz o nosso carnaval na cidade maravilhosa.
E o pôr-do-sol na praia de Ipanema? Realmente é merecedor de aplausos. Ali, nessa localização, naquele momento, um pedido de casamento, uma confissão apaixonante, uma troca de olhares ao acaso, um trago no drinque escocês, um tabaco aceso no fósforo por cima, uma esperança de um mundo melhor é o que de fato se petrifica na essência de nossa alma!
Carnaval carioca, tu és distinto! Marcou-me de salutares fantasias, necessárias ilusões. Suas travessuras apaixonam o mundo. Seu samba de qualidade acoplado ao seu chopp gelado aproximam os casais, desconstituem os casais, formam os novos casais: imortalizam o amor! Praias indescritíveis, povo acolhedor, mas às vezes ousados nos delitos contra o patrimônio, padarias antigas, bares populares e sofisticados repletos de ébrios febris.
Rio de mar e montanhas. Meninas curvilíneas coloquem ainda mais fogo no samba, abusem de seus predadores, continuem falando mole e com muito dengo, sejam sempre assim, seus traquejos de flor com espinho extinguem o consumo de medicamentos azuis. Carnaval carioca, samba carioca, praia carioca, mulher carioca, saibam que suas efervescências iluminam meu caminho e me conduzem ao mesmo sentimento do poeta da vila, que um pouco antes de partir dessa para uma melhor, relutou para retornar ao fascinante bairro da Lapa com o propósito de beijar sua amada, afinal este era o seu, e o nosso, primeiro e último desejo. Carnaval carioca: uma utopia real!
(Guilherme Bastos de Peruchi – 04 de maio de 2010 às 00:53 do novo dia)